5 - História da Epistemologia

De onde vem a Epistemologia?

A História da Ciência que nós conhecemos é Europeizada e Eurocêntrica!

Aikenhead (Stories from the Field) denuncia estar disseminado um conceito de superioridade da civilização cristã ocidental baseado numa 'arrogância ignorante' [sic] do resto do mundo.

"Diversas estratégias têm sido usados ​​para reforçar o mito de que as regiões fora da Europa em nada contribuíram para o desenvolvimento da ciência e tecnologia quer em termos de hardware ou software, a visão de que, historicamente, a maior parte do mundo tem sido receptora passiva de uma assim chamada ciência e tecnologia ocidentais." (EMEAGWALI, Eurocentrism and the History of Science and Technology)

Segundo Roque (2012), Regiomontanus, um humanista com vasto conhecimento matemático,

"reconhecia que outros autores brilhantes escreveram sobre esses assuntos 'em diversas línguas', mas seus nomes não são citados por 'falta de tempo'" (ROQUE, 2012, p. 21).

Grécia

Parece que o mundo inteiro vivia na mais completa selvageria até que um raio de luz divina iluminou os abençoados gregos e, com isso, a Grécia se tornou o 'berço da civilização', expressão que já li inúmeras vezes.

Mileto

Segundo Roque (2012),

"A partir do século XVI, a história foi escrita, muitas vezes, com o intuito de mostrar que os europeus são herdeiros de uma tradição já européia, desde a Antiguidade. Nesse momento, construiu-se o mito da herança grega" (ROQUE, 2012, p. 20).

Vale a pena lembrar que

"o século XVI é o período da expansão colonial, obviamente associada ao desejo de construir uma identidade europeia, com características intelectuais que pudessem ser demarcadas dos 'outros' povos com os quais os europeus estavam entrando em contato. [...] à depreciação colonialista do que não é europeu veio se somar a necessidade de controlar e domesticar as classes populares" (ROQUE, 2012, p. 22).

Como veremos na aula As Contribuições de Galileu e Newton - Parte 2, essa 'reconstrução' da história, feita no Renascimento, suporta as ideias eurocentristas de Século das Luzes, de Iluminismo e de Revolução Científica.

Vale a pena lembrar, porém, que Tales de Mileto (falaremos mais dele adiante), supostamente o filósofo grego que começou tudo, o 'Pai da Ciência', era Fenício por parte de mãe (isto é, asiático), o mesmo ocorrendo com Pitágoras e Ptolomeu (EMEAGWALI, Eurocentrism and the History of Science and Technology)! Também é relevado o fato de que ele estudou no Egito, antes de começar a enunciar seus pensamentos na Grécia, atribuindo-lhes um papel na ciência europeia ao mesmo tempo em que os exclui da ciência africana.

Fenícia

"A interação constante dos gregos antigos com os seus homólogos africanos é suprimida, apesar de os Gregos terem sempre reconhecido essa interação." (EMEAGWALI, Eurocentrism and the History of Science and Technology)

Uma estratégia sutil, mas eficaz, é latinizar os nomes dos pensadores, inventores e documentos não-europeus (EMEAGWALI, Eurocentrism and the History of Science and Technology):

O mais antigo artefato matemático, datando de 35.000 a.C. (!), o osso de Lebombo, foi encontrado na atual Suazilândia, no sul da África.

osso de Lebombo

O segundo artefato mais antigo, o osso de Ishango, datando de antes de 18.000 a.C., foi encontrado numa região entre Uganda e Congo, no norte da África. Devido aos grupos de traços, foi interpretado como um dispositivo de cálculo de divisões e multiplicações.

osso de Lebombo

Ambos, inicialmente foram considerados meras ferramentas raspadoras, antes de terem sido interpretados como instrumentos matemáticos, indicando uma cultura muito mais avançada.

Entretanto, em geral, a maioria das criações tecnológicas da África é tratada como 'folclóricas' e, por isso, são confinadas a museus de arte, enquanto os processos científicos e técnicos subjacentes são deliberadamente banalizados e mal atribuídos:

Aikenhead (Stories from the Field) rotula essa pretensa superioridade da Ciência Ocidental de ‘arrogância ignorante’.

Constelações

Estamos tão acostumados com as 'nossas' 88 constelações celestes reconhecidas pela União Astronômica Internacional (UAI) desde 1922 (que, na verdade, em sua maioria, se inclui nas 48 constelações definidas por Ptolomeu em seu Almagesto, no século II), que esquecemos que são apenas associações arbitrárias de estrelas.

De fato, outras culturas associaram estrelas de forma diferente, levando a outros arranjos de constelações, perfeitamente válidas, no entanto.

Assim, por exemplo, as estrelas da constelação que conhecemos como Escorpião

Astronomia - Constelação de Escorpião

são interpretadas, na astronomia tradicional chinesa como a consteção Dragão Azul do Leste.

Astronomia chinesa - Constelação de Dragão Azul do Leste

Por outro lado, os nativos norte-americanos interpretavam-nas, juntamente com as da constelação da serpente, como fazendo parte da constelação Pássaro do Trovão.

Astronomia nativa norte-americana - Constelação de Pássaro do Trovão

Já, na astronomia aborígene Australiana, elas, juntamente com as que formam nossa constelação do Cruzeiro do Sul, bem como algumas nebulosas escuras como a conhecida como Nebulosa do Saco de Carvão, são vistas como formando a constelação Ema no Céu.

Astronomia aborígene australiana - Constelação de Ema no Céu

Preconceitos

yogiChattopadhyaya (History, Science and Technology in Ancient India, p. 7) denuncia que é assumido que os indianos eram um povo místico, dado a especulações metafísicas e contemplação espiritual, cuja principal contribuição teria sido os Upanishads (textos filosóficos e  religiosos hindus), enquanto é pouco conhecido o fato de que cultivaram fortemente as ciências experimentais. Denuncia, ainda, que essa forma de apresentar as tendências místico religiosas do passado como a quinta-essência da cultura asiática e a ciência como um monopólio da Europa ocidental presta um serviço ao conservadorismo nos países asiáticos, levando as pessoas a ignorar a ciência em favor de seus obscurantismos locais, preservando castas e alimentando fanatismos. Esse conservadorismo chega mesmo a lamentar a fascinação dos jovens indianos pela ciência e pelo racionalismo!
Matteo Ricci e Xu GuangqiMatteo Ricci, famoso jesuíta e cientista italiano do Renascimento, que esteve em missão na China, numa postura bastante eurocêntrica, enumerou, numa carta de 1595, várias ideias chinesas que considerou absurdas:

Note, porém, que esse 'empíreo', também conhecido como 'firmamento', uma esfera, "sólida como um espelho fundido" ( 37:18), que separava "as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento", onde também estavam encravados os 'luminares' (Sol e Lua) e as estrelas (Gen. 1:14-17), era uma crença hebraica, mantida tanto pelos judeus, como pelos cristãos e islamitas, desde, pelo menos, 200 a.C.

Machina Mundi - Firmamentum

Os gregos, por sua vez, acreditavam em 'esferas celestes', constituídas pelo quinto elemento Aristotélico, o 'éter incorruptível', conforme veremos na aula As Contribuições de Galileu e Newton - Parte 1.

Vale lembrar que a palavra órbita deriva etimologicamente do latim orbis (orbe), significando 'disco' ou 'anel', também relacionada a 'triha ou sulco feito no chão pela passagem de veículos de roda, tal como de uma carroça'. Curiosamente, 'exorbitar' significa 'desviar da regra', 'sair do trilho'.

Os cristãos Medievais, desde Agostinho a Tomás de Aquino, assimilaram essas ideias gregas ao cânon cristão e consideraram o firmamento como a morada de Deus e das criaturas celestes.

modelo geocentrico teológico

Por volta do ano 1000 d.C., o grande matemático e astrônomo árabe Ibn al-Haytham descobriu que as tais 'esferas celestes' não eram constituídas de matéria sólida. Apesar disso, no século XII ainda se discutia se elas seriam reais, concretas, ou apenas "círculos abstratos nos céus, traçados ano após ano, pelas várias estrelas e planetas".

órbitas planetárias

Em 1554, Calvino relativizou a cientificidade das afirmações bíblicas, abrindo caminho para o progresso científico. 

"A 'Doutrina de acomodação' de Calvino permitiu aos protestantes aceitar as descobertas da Ciência, sem rejeitar a autoridade das Escrituras."(PICCARDI; MASSE, Myth and Geology, p. 40.)

Somente na segunda metade do século XVI, após a missão de Ricci, portanto, com os trabalhos de Copérnico, Tycho Brahe e outros, a idéia das esferas celestes como regiões abstratas puramente geométricas foi se consolidando. Giordano Bruno abandonou de todo a noção de firmamento, propondo um universo inifinito, em que as estrelas são sóis, elas próprias.

Por outro lado, acreditava-se na concepção Aristotélica de que os corpos eram formados pela mistura de quatro elementos: ar, fogo, água e terra, por vezes incluindo o quinto elemento, éter, mais sutil. Essa concepção, cuja origem se perde na noite dos tempos, provinda de civilizações mais antigas, tais como os egípcios (sempre os egípcios!), envolvendo personagens lendários, tais como Hermes TrismegistusÍsis e Toth, perdurou durante toda a Idade Média até a Renascença, sendo mantida pelos alquimistas e contestada por Lavoisier, no século XVIII, quando demonstrou que a água e o ar são compostos, não elementares, e que o fogo não é um 'elemento'.

os quatro elementos de Aristóteles

Por outro lado, a teoria chinesa dos cinco elementos, metal, madeira, terra, água e fogo, os considerava mais metaforicamente como fases ou etapas do que como elementos físicos.

cinco elementos chineses

Desta forma, Ricci não estava certo em criticar os chineses, pois, fossem 4 ou 5 elementos, ambas descrições, meramente descritivas e analógicas, foram descartadas posteriormente.

Segundo Needham, o progresso europeu na Renascença muito deve às 'Quatro Grandes Invenções Chinesas':

Mo TzuO nome que se destaca na Mecânica Chinesa é Mo Tzu (ou Mozi), contemporâneo de Demócrito, Hipócrates e Heródoto (NEEDHAM, Science and civilisation in China, vol. 4, p. 165), e que escreveu proposições físicas verdadeiramente 'newtonianas' tais como:
Yin-YangAssim, o movimento inercial, absurdo para os pensadores ocidentais medievais, era perfeitamente aceitável para os filósofos chineses, já que o Tao, conceito central do Taoísmo, era um princípio de movimento incessante, de eterna mudança (idem, ibidem, pp. 61-62).

Também, para o pensamento chinês, sempre em termos de contínuos e não de partículas, nunca foi difícil a ideia da acção à distância, ao contrário do pensamento europeu que só o foi aceitar no século 17 (idem, p. 60).

De fato, Needham (Science and civilisation in China, vol. 4, p. 1) considerou que os filósofos Chineses antigos estavam tão mais avançados que os Europeus em Óptica e em Magnetismo que ousou especular que, se as condições sociais houvessem sido favoráveis, a Física poderia ter evoluído numa sequência diferente, do Magnetismo e Electricidade para a Física de Campos, sem passar pela Física das ‘bolas de bilhar’ (Mecânica).

Etnofísica

Aikenhead (1996) afirma que 

"A Ciência Ocidental é um sistema de conhecimento cultural em si, uma das muitas subculturas da sociedade euro-americana. Em certo sentido, isso significa que a Física Newtoniana é uma Etnofísica porque emergiu de uma poderosa subcultura dentro da sociedade Euro-americana (Euroetnicidade)."

EtnnomatemáticaNote-se que o prefixo 'etno' está sendo utilizado, aqui, tal como D’Ambrósio o fez na Etnomatemática, com um significado mais amplo do que o restrito à etnia, incluindo também qualquer grupo cultural identificável, tais como grupos sindicais e profissionais, crianças de uma certa faixa etária, etc., e a memória cultural, códigos, símbolos, mitos e até maneiras específicas de raciocinar e inferir, presentes na Matemática praticada por categorias profissionais específicas, em particular pelos matemáticos, a Matemática escolar, a Matemática presente nas brincadeiras infantis e a Matemática praticada pelas mulheres e homens para atender às suas necessidades de sobrevivência. (KNIJNIK, Exclusão e Resistência, pp. 68, 73 e 74)

Por outro lado, segundo essa autora, os estudantes vivem e convivem dentro de diversas subculturas identificadas, por exemplo, por nação, língua, gênero, classe social, religião, e localização geográfica, e que os estudantes se deslocam de um subcultura para outra, um processo denominado, por ela, de 'travessia de fronteira cultural'.

Outra forma de dizer isto é que o estudante pode ter de cruzar uma fronteira cultural quando passa do seu mundo quotidiano da ciência do senso comum para o mundo da ciência oficial da escola, isto é, aprender ciência é um evento intercultural e multicultural.

cruzando fronteirasAikenhead (1996) afirma, ainda, que os alunos serão mais bem sucedidos se receberem ajuda de um professor para transpor essa fronteiras culturais, identificando as fronteiras a serem cruzadas, estimulando-os a fazer compreender os conflitos culturais que possam surgir e os impactos que a Ciência e Tecnologia Ocidentais tem na sua vida cotidiana. Tal professor é chamado de 'despachante cultural' (cultural broker).

Aikenhead (1996), dentro de um referencial cultural para o ensino de ciências, distingue ainda dois processo de ensino:

É facil de ver que o ensino de ciências, em geral, segue, mesmo que inconscientemente, o processo impositivo de aculturação. 

O desafio para os professores de ciências, então, é ver a ciência sob uma nova luz, que reconhece que cada cultura mundial tem sua própria ciência e que a ciência ocidental é apenas uma maneira de saber sobre a natureza, apesar de uma forma muito poderosa, procurando enculturar o estudante na cultura científica vigente, sem violentá-lo.

Veja mais sobre Etnomatemática e Etnofísica

Etnomatemática dos produtores ruraisHistória da Física - Etnomatemática e Etnofísica.

História da Epistemologia - Parte 2Continue a conhecer a História do Pensamento.

Voltar à Parte Anterior